sábado, 31 de janeiro de 2009

A visita ao Opô Afonjá.



Viajei à Salvador destinado a conhecer determinados lugares, e um deles era o Opô Afonjá. Minha vontade inicialmente era passar o dia lá, batendo papo com os mais velhos, colhendo informações, tirando fotos, respirando a atmosfera daquele lugar abençoado. Numa terça-feira de sol, dia 20 de janeiro de 2009, lá ia eu, as oito da manhã em direção ao Cabula, mais precisamente ao bairro de São Gonçalo do Retiro. Cheguei lá de carro, acompanhado de dois tios e um primo. Entramos na tal Rua de São Gonçalo do Retiro e começamos a procurar o lugar. Quando avistamos uma plaquinha linda de azulejos azuis e brancos escrito o número 557 já era tarde, havíamos passado direto. Mas nada mal, era só voltar, e foi o que fizemos. Entramos com o carro no terreiro, após dar um alô pro guarda que se encontrava na porta. Minha felicidade era tamanha em estar naquele lugar tão lindo, tal e qual eu via nas fotos de Verger. Saltamos do carro, e eu já com a máquina preparada. Mal sabia que ia sair dali com somente cinco ou seis fotos tiradas. Fomos andando pelo chão batido, de barro puro, em direção à Casa de Xangô, que era a primeira por onde passaríamos. Era uma casa toda revestida de pedras grandes, dispostas de forma irregular. Haviam umas pilastras na cor vermelha, a cor do orixá. Perto de uma das portas havia ainda uma imagem simbólica de Xangô em tamanho real de uma pessoa, linda por sinal. O teto da varanda era cheio de bandeirinhas, típicas de um terreiro de candomblé. Nas duas janelas havia uma inscrição que dizia o seguinte: “Opô Afonjá 1910”, naturalmente, suponho eu, o ano da abertura do terreiro. Ao lado de uma das portas, que estava fechada, escrito estava o nome do dono da casa, em pedras, parecia, meio envelhecidas. Nas duas portas da casa havia ainda o mariwó, folha do dendezeiro, que segundo li em algum lugar, protege contra os possíveis eguns que possam se aproximar. Pela lateral veio uma mulher, baixa, de cabelos enrolados, falar conosco. Meu tio então me intercedeu, e disse que queríamos visitar o lugar, que eu gostaria muito de conhecer as pessoas, de conversar com elas. Eu logo disse o mesmo. Para meu espanto, fomos recebidos muito cordialmente por essa mulher, que mais tarde saberia seu nome: Carmem. Ela então nos perguntou se já havíamos falado com Mãe Stella, e eu lhe disse que não. Nos disse pra conhecermos o museu que havia mais pra trás, e a lojinha. Fui então na lojinha, começamos a conversar um pouco, e lhe disse que havia lido recentemente o livro de Mãe Senhora. Para meu espanto, ela me disse que havia ainda o livro de Mãe Aninha, e que estava à venda lá. Claro, tratei de comprar meu exemplar. Depois nos encaminhamos ao museu, que ficava a uns cinqüenta metros dali. Após perguntar qual seria a porta certa, chamei por alguém e logo fui recebido também muito cordialmente por uma mulher, negra, de cabelos presos. Ela então abriu as portas do lugar, e nos convidou a entrar. Começamos a conversar, e fui informado que poderia colocar meus pertences num cabideiro que havia na entrada, para que assim pudéssemos conhecer o museu mais livremente. Perguntei-lhe se poderia fotografar, e ela me disse que não, para minha pequena tristeza. Porém, respeitei a ordem. Começamos a visita pelos tronos das mães-de-santo anteriores, a começar por Mãe Aninha. Seu trono era de madeira escura, como ela disse, com símbolos católicos inscritos no encosto. Depois passamos para o trono de Mãe Senhora. Este já era de vime claro, com estofado estampado, lindíssimo por sinal. Tal e qual via nas fotos de Verger. Logo após vimos o trono de sua sucessora, que não me recordo muito bem como era. Então a mulher, que até hoje não sei seu nome, foi mostrando o restante das peças, entre elas objetos rituais de todas as mães-de-santo do terreiro, suas roupas, a de seus orixás, quando vinham em terra para dançar, e outras coisas mais. Minha emoção era enorme. Vimos os três atabaques da época de Mãe Aninha, todos brancos, postos em bancos, para não entrar em contato com o chão. Entramos na sala azul, a de Oxóssi, segundo ela, que era um lugar especial para Mãe Stella. Lá haviam uns inscritos, roupas, fotos, livros publicados por Mãe Stela, e objetos rituais. A visita acabou, e ainda ficamos conversando um pouco. Ela falava de um modo muito rápido, e acabei perdendo algumas informações. Então agradeci muito a sua simpatia, e saímos do museu. Não sei por que, talvez por estar tão emocionado, fomos nos encaminhando pra ir embora, e eu não tirei mais fotos, foram poucas ao todo. Passamos por Carmem, e ela me perguntou quando iria embora. A respondi, e fui informado que no dia seguinte seria realizado um amalá pra Xangô, o patrono da Casa. Dei quase certeza que iria, afinal seria uma oportunidade única. Fomos pra casa então, e tinha ganhado o dia, me arrisco a falar, a viagem! Fui matutando quem poderia ir comigo no dia seguinte, só que não havia ninguém para ir. Pensei, pensei, e perdendo o medo, resolvi ir sozinho. No dia seguinte então, acordei novamente às sete da manhã, e parti rumo a roça de São Gonçalo. Mil pensamentos, do que poderia acontecer lá dentro, um misto de medo e emoção tremenda me preenchia. Chegamos no terreiro, eu e meu tio, e ele foi embora. Fiquei lá sozinho então. Fui me encaminhando para Casa de Xangô, e perguntei a um senhor de meia idade, negro, filho de santo da casa, ou se tem outro cargo não sei, onde seria o tal amalá. Fui respondido que seria ali mesmo, na Sua Casa, e que já poderia entrar. Fui me aproximando da casa, e chegando a porta percebi que já havia uma movimentação intensa de filhos e filhas de santo preparando tudo, e que lá dentro já esperavam algumas pessoas, que seriam atendidas por Mãe Stela. A sala da Casa de Xangô era relativamente pequena, com um sofá vermelho, outra poltrona vermelha, umas cadeiras de plástico branco, um suporte de madeira com uns vasos de cerâmica. Nas paredes, pendurados, alguns quadros com fotos das mães de santo anteriores, com destaque para um grande quadro com a foto de Mãe Aninha. No teto, uma lâmpada branca, fria. Prostrei-me perto da porta, quase no meio do caminho, mas preferi ficar ali dentro, pra poder ver de perto tudo que acontecia. Eu só observava aquilo tudo, encantado. Uma filha de santo, vestida como tal, organizava a ordem de entrada no outro cômodo onde se encontrava Mãe Stella. Achei curioso seu modo de se dirigir às pessoas. Ela andava de forma muito contida, de cabeça baixa, de modo tranqüilo, bem devagar. De vez em quando ia a cada uma das pessoas presentes e perguntava se a pessoa em questão estava esperando a sua vez para a consulta ou se havia ido para o amalá. Ela então veio até mim, me perguntou se eu estava esperando minha vez do jogo, e eu lhe disse que não, que só havia ido para assistir o amalá. Antes disso, enquanto estava em pé ao lado da porta, uma moça, aparentemente de uns 29 anos veio puxar assunto comigo. Perguntou-me se eu fazia teatro, lhe disse que sim. E ela perguntou: “De rua?”, respondi que não. Então começamos a conversar, lhe perguntei o que aconteceria no tal amalá, ela foi me explicando, e ficamos batendo papo durante um tempinho. Depois uma filha de santo da casa me cedeu uma cadeira de plástico branco, e então fui me sentar, do outro lado da sala, perto da porta da cozinha. Atrás de mim havia um cabideiro, que ninguém chegou a usar.
Estava eu a observar aquela movimentação intensa, quando de repente ouço um barulho estranho, como se fosse um gato, bem manso, chorando. Um choro, de algo ou alguém, parecia. Logo imaginei que seria alguém incorporando um orixá. Mais ou menos um minuto depois passa por mim uma jovem mulher, com um pano da costa amarelo amarrado no peito, incorporada de Oxum. Ela estava com os pés descalços, com as mãos viradas pra trás, e de olhos fechados. Todos na sala levantaram as mãos, e a saudaram: Ora ieie ô. Eu fiz o mesmo, mentalmente, com vergonha de ser visto. Ela, ao passar pela porta, se virou, para passar de costas, e por cinco segundos gelei, pensando que o orixá presente fosse me abraçar. Ela então se encaminhou para a porta do altar, se não me engano. Acho que saudou Xangô, e depois foi para a porta de saída, se virou novamente, e saiu. Criou-se uma movimentação maior lá dentro, e todos se perguntavam quem iria despachar o orixá. Ouvi uma filha de santo, aparentemente antiga, falando que aquilo não era responsabilidade dela, e que não ia fazer nada, pois estava sem paciência. Não entendi muito bem, mas continuei observando. O pequeno stresse passou, e todos na sala voltaram a conversar normalmente. Logo a porta da outra sala se abriu, um ser iluminado apareceu sob a porta. Era Mãe Stella, linda, de saia rodada branca, e camisa larga azul clarinho. Cabelos destampados, e brancos devido à idade. Ela saiu da salinha onde se encontrava, e todos automaticamente na sala se acomodaram nas cadeiras e sofás, pararam de conversar e se prostraram em silêncio, em sinal de respeito a grande mãe. Rapidamente uma mulher que esperava na sala maior levantou-se e foi lhe pedir a benção, beijando-lhe a mão. Mãe Stella lhe disse algo, e a cumprimentou, e pelo que eu entendi, a tal moça era parente do rapaz que acabara de se consultar com ela. Eles sorriram um pouco, Mãe Stella também, trocaram algumas palavras, e a grande mãe se dirigiu à cozinha, acho que para beber um copo d’água e descansar um pouco. Umas outras pessoas então, percebendo a saída de Mãe Stella foram até a cozinha cumprimentá-la. À toda hora, filhos e filhas-de-santo iam até a porta onde estava Mãe Stella, para pedir-lhe a benção, ou lhe dar um recado, pedir um conselho, mas eram sempre embarreirados pela “secretária” cabisbaixa. Mãe Stella voltou para a salinha, para dar prosseguimento as consultas e logo depois saiu, dizendo que era chegada a hora de começar o amalá. Criou-se então uma movimentação intensa de pessoas saindo e entrando da casa, na cozinha, no tal quartinho. Vi que as pessoas que estavam esperando foram se encaminhando para a outra salinha e fui atrás. Logo depois umas filhas de santo passaram com o caruru e as comidas nos ombros, em potes de madeira, típicos de candomblé. Perguntei então a amiga que fiz lá o que faríamos, e fui informado para segui-la. E assim fiz. Entrei para a outra salinha, e me coloquei no final da fila que automaticamente se formou, atrás da minha conhecida. As pessoas foram entrando, entrando, entupindo a sala pequena. As comidas foram colocadas no altar de Xangô, e alguém, que não consegui enxergar quem, começou a puxar um cântico em yorubá e a bater palmas leves. Todos a seguiram cantando e batendo as palmas leves. Eu só batia as palmas, já que não conhecia o tal cântico. O primeiro cântico acabou, e foi puxado outro. Esse outro havia sido um dos primeiros cânticos que conheci quando me interessei por candomblé. Pra minha alegria, eu podia cantar com eles, os acompanhando. Minha emoção era tremenda. Estava em êxtase. A tudo observava com atenção. Claro, muita coisa eu perdi, pois estava posicionado no finalzinho da fila, no fundo da sala. Foi me dando um medo do que poderia acontecer, afinal estava sozinho e não conhecia ninguém ali, a não ser a minha amiga que acabara de conhecer não fazia nem uma hora. As pessoas foram incorporando diversos orixás, e cada um era saudado pelos filhos e filhas de santo. Veio Xangô, Iemanjá, Iansã, dançando como sempre imitei e sonhei em ver, Oxum, se não me engano, e algum outro que não soube reconhecer. Era um lindo espetáculo. Eu estava emocionado. Os orixás dançaram um pouco, Iansã ia lá fora dar seu ilá, lindo por sinal, e todos vibravam com a energia deles. Depois eles foram saindo, às vezes voltavam, já com panos amarrados no peito e na cabeça, e logo sumiram. Apenas Iansã era ouvida, lá fora. A fila foi andando, e aos poucos as pessoas foram deitando no chão, dando o dobale e o iká, saudando Xangô, saudando Mãe Stella e a uma senhora curiosa que se encontrava ao lado da grande mãe. A moça do museu chegou, eu a cutuquei, e ela fez um gesto carinhoso falando comigo. Minha vez estava chegando, e eu nervoso com o que poderia acontecer dali pra frente, resolvi cutucar minha amiga e lhe perguntar o que fazer. Ela então me disse para observá-la e repetir o que fizesse. Ela então foi lá, o saudou, saudou a grande mãe, me fez um sinal e saiu. Os sapatos eu havia deixado lá fora, e a bolsa deixei em cima de um baú, com um nó para que não abrisse. Minha vez chegou, e eu perguntei a uma antiga filha de santo da casa se poderia ir. Dei uns passos, me prostrei em frente ao altar, me deitei no chão, coloquei as mãos pra trás, encostei a testa no chão, e o saudei, em silêncio, só falando mentalmente: Kawô Kabiesile! Minha emoção era tremenda, que pude sentir sua força, eu acho. Sei que senti uma coisa, que não sei explicar, que nunca havia sentido. Uma força no peito, na cabeça, uma sensação boa, que me lavou os males. Enquanto me deitava, ouvi uma pessoa atrás de mim falar o seguinte, para a minha vergonha: “É a primeira vez que ele vem né?!”. Franzi a testa no momento, mas continuei. Algumas pessoas colocavam um dinheiro, pouco, num pote de madeira, mas eu não coloquei. Outras se prostravam pra frente, em direção ao altar, para o lado esquerdo, e depois para o direito. Eu, na minha humilde ignorância apenas me prostrei para frente. Depois disso, me virei, e fiz o mesmo gesto, me deitando, em frente à Mãe Stella. Peguei sua mão, a beijei, e ela me disse algo do tipo: “Deus te abençoe”. Foi o que eu entendi. Mas a achei um pouco desinteressada naquilo, disse isso a mim enquanto falava com outra pessoa do seu lado, não dando muita importância àquilo que estava fazendo. Mas enfim, me senti ainda honrado de ter podido participar daquele ritual tão lindo. Então, voltei para a fila, peguei minha bolsa, e saí, de cabeça baixa. Calcei minhas sandálias, já fora da sala pequena. As pessoas na sala maior já comiam o caruru, a comida oferecida ao orixá. Dirigi-me a minha amiga, a que fiz lá, e lhe perguntei se eu poderia ir embora, já que não gosto de quiabo, o principal ingrediente do caruru. Ela me perguntou se eu não ficaria pro caruru, lhe disse que não, ela me disse que gostaria de comer, mas que se eu quisesse mesmo ir que poderia. Agradeci-lhe por toda a ajuda, e fui saindo da sala, maravilhado com tudo que havia acontecido. Liguei pro meu tio, para que ele fosse me buscar, e me dirigi à saída. Fiquei esperando durante uma meia hora. E enquanto esperava, uma sede me bateu. Vi que algumas pessoas estavam comendo sacolés de frutas, e pra minha alegria, estavam a venda. Fui lá comprar um, e aproveitei e falei com a Carmem, que estava na porta da lojinha. A agradeci também pela recepção, e falei que estava completamente encantado, adorando tudo. Ela me falou do calendário das festas, e peguei o telefone do terreiro, para saber com mais detalhes, as datas e tudo mais, caso quisesse voltar um dia. Encaminhei-me então em direção a porta de saída, e tirei a ultima foto, de longe, admirando a beleza do lugar. Contei para todo mundo minha experiência, e fui pra casa maravilhado, o que me fez perder certos medos, e ter um dia lindo, num outro lugar tão lindo quanto. Comecei o ano abençoado por Xangô e por Mãe Stella, e agradeço muito a esse fato.
Foi um dia incrível, uma experiência fabulosa, que me fez admirar ainda mais essa linda religião. Salve Xangô, o patrono da Casa. Salve o Opô Afonjá, lugar abençoado. Salve Mãe Stella, ser de luz. E salve esse dia, onde fui muito feliz.

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